Crítica: Ilha dos Cachorros
Mais objetivo e aventuresco, Wes Anderson entrega um de seus melhores filmes com Ilha dos Cachorros
Nas mais diversas premiações, há a categoria de Melhor Animação. São indicados, geralmente, cinco filmes com propostas radicalmente diferentes, que competem entre si. A falta de sentido nisso é apontada frequentemente, e já estamos todos acostumados a ver animações com sensibilidades diferentes terem suas chances de vitória obliteradas diante de sucessos da Disney / Pixar. No entanto, toda vez que somos agraciados por obras como Ilha dos Cachorros, de Wes Anderson, a frustração é quase tão grande quanto a apreciação pelo filme.
Famoso pelos planos centralizados e simétricos e personagens suavemente deslocados, Anderson já provou em 2009 que sabe compor um filme animado como ninguém, com o ótimo O Fantástico Sr. Raposo. Com uso da técnica de animação stop-motion e diálogos maduros, o longa repetia muitas das virtudes encontradas em suas obras “de carne e osso”. Agora, com Ilha dos Cachorros, Anderson continua esbanjando o mesmo talento metódico, mas também entrega o que é facilmente seu filme mais objetivo até hoje, com poucos rodeios e impulsionado por um senso de aventura constante.
A partir de um contexto imaginado por Anderson em conjunto com Roman Coppola, Jason Schwartzman e Kunichi Nomura, em que cachorros são isolados em uma ilha remota do Japão após uma epidemia de febre, Ilha dos Cachorros se beneficia bastante da simplicidade de seu roteiro, em que um garoto (Koyu Rankin) vai até a ilha do título para buscar seu antigo cão de guarda (Liev Schreiber). É claro que a trama tem suas idas e vindas, apresentadas através de subtramas e flashbacks, mas o coração do filme está firmemente posicionado na relação entre o menino e o bando de cães que encontra em sua viagem. Por falar nisso, que cães: Chief (Bryan Cranston) é um vira-lata sem muitas firulas e fantasias, Rex (Edward Norton) é seu súdito tagarela e bem-intencionado, Duke (Jeff Goldblum) sempre tem anedotas e fofocas para contar e Boss (Bill Murray)… é simplesmente dublado por Bill Murray, o que não demanda maior explicação.
Com o mesmo humor seco e interpretações regradas de sempre, o filme de Anderson constrói seus principais arcos dramáticos de maneira sorrateira, desarmando-nos com observações engraçadas para depois encontrar grande verdade nos animais do título. Embora os cães sejam humanizados, o roteiro demonstra bastante inteligência emocional ao universalizar os sentimentos dos personagens sem que estes percam suas características mais distintas e sem entregar mensagens mastigadas. É uma troca refrescante de marchas entre as demais animações, que se limitam às lições de moral ou conclusões bem amarradas. Não que Ilha dos Cachorros seja um filme moralmente cinzento ou complexo, mas ao menos confia na inteligência do público e evita telegrafar sentimentos, tornando a jornada mais arrojada e seu destino mais satisfatório.
Há infelizmente alguns pormenores que param Ilha dos Cachorros em seus trilhos, mesmo que nunca descarrilhe de fato. As subtramas relacionadas à conspiração envolvendo o prefeito e as investigações de uma estudante de intercâmbio – mera desculpa para elencar a boa Greta Gerwig – interrompem as aventuras do garoto e dos cães mais vezes do que o necessário, considerando que o tempo na ilha também é composto por flashbacks e outros desvios. Além do mais, a mesma estudante representa uma tentativa forçada de conferir protagonismo a uma personagem branca em meio um elenco que, se não canino, consiste apenas de personagens orientais (inclusive com todas suas falas ditas em japonês). Talvez os hipsters americanos teriam dificuldade em se identificar sem a presença da garota?
No entanto, a todo momento, Ilha dos Cachorros é visual e sonoramente excepcional. Além dos bonecos minuciosamente detalhados de cada cão, com pelos em constante movimento, brilham também as figuras humanas, que são usadas pela primeira vez por Anderson em uma animação – suas peles texturizadas, suas expressões faciais e movimentação pelo cenário são sempre convincentes. Porém o que torna os personagens ainda mais palpáveis é a excelente mixagem de som, que valoriza as particularidades das vozes de cada ator, especialmente Cranston e Schreiber, que aqui possuem timbres e entonações muito semelhantes (por um bom motivo).
Montado a seis mãos e com música do sempre confiável Alexandre Desplat, que nunca usou tanta percussão em um filme só, Ilha dos Cachorros proporciona um sentimento de empolgação, mais do que em qualquer outro filme de seu diretor. Demonstrando novamente um grande controle do ritmo, Anderson atenua suas qualidades mais off-beat e assume que está conduzindo um filme de aventura para crianças e adultos, com boas cenas de ação e sensibilidade de desenho animado – os trechos animados em 2D, que representam materiais assistidos através de TVs ou câmeras de vigilância, dão uma maior variedade visual. Tudo isso, aliado da composição atenciosa de cada plano, torna Ilha dos Cachorros em uma experiência ágil e vívida, que se encerra antes mesmo de constatarmos que sua duração talvez seja um pouco mais extensa que a da maioria das animações contemporâneas.
Além de estar entre os melhores filmes de Wes Anderson, Ilha dos Cachorros é o melhor filme animado do ano até agora – o que não deve significar bulhufas para a Academia, entre tantas outras. Isso que nem falei que Tilda Swinton empresta sua voz a um pug…