Crítica: Lamparina da Aurora

Crítica: Lamparina da Aurora

Originalidade, ousadia, poesia, simplicidade. Não é pequena a lista de itens que faltam em filmes nacionais. Nos últimos anos, percebemos uma crescente atenção em cima de filmes brasileiros independentes que procuram trazer obras diferenciadas, com um conteúdo singular, e produzidos com baixo orçamento. Frederico Machado parece saber bem disso e usa seu conhecimento e técnica para elaborar um dos filmes mais profundos e reflexivos do ano. Responsável pelos aclamados longas O Exercício do Caos (2013) e O Signo das Tetas (2016), dessa vez o cineasta se inspira na obra poética de seu pai, Nauro Machado, e traz para o cinema toda sua sensibilidade artística com Lamparina da Aurora (2017).

Nessa fábula existencial sobre o tempo, o corpo e a natureza, um casal de idosos recebe a visita de um misterioso forasteiro todas as noites na fazenda isolada em que vivem.

Para você que está lendo essa crítica, talvez a simples sinopse acima seja o suficiente para te dar um norte e permitir um intrigante e completo experimento a partir do desconhecido. Porém, comentarei sobre a identidade da obra e o desenvolvimento deste significativo enredo.

O filme não esboça intenções de se explicar, revelar seu sentido ou qualquer tipo de crítica social. Pode, sim, ser interpretado de muitas formas, mas aí está a graça do roteiro: no fato de permitir que o espectador enxergue o que quiser a partir da poesia visual (dado por certeiros enquadramentos médios e próximos além da caprichosa direção de arte) e da sutilidade das cenas contornada pelo roteiro. A valorização do silêncio e da rotina dos personagens refletem seus estados de espírito, seus conflitos internos e a carência de relações humanas. Os três atores se saem bem ao transmitir esperança através de olhares e gestos corporais, ainda que as condições emocionais de seus personagens se declarem penosas.

Frederico Machado, além de dirigir e roteirizar, também produz e constrói a fotografia do filme e sabe como tocar o espectador com planos estáticos, de pouquíssimos movimentos, que transbordam uma iluminação transcendente e criam um ambiente onírico e ao mesmo tempo natural, claramente buscado pela proposta.

Intrinsecamente, a obra traz consigo uma identidade brasileira por meio de belos cenários naturais e pela poesia narrada ao fundo em determinados momentos do filme. Essa poesia parece tentar esclarecer, justificar ou até mesmo provocar questionamentos em seu espectador, e o fato de não tomar um caminho definido é o que mais uma vez torna a experiência de assistir Lamparina da Aurora misteriosa e estimulante. O que ajuda a construir o clima de suspense (e terror, em alguns momentos) é a trilha sonora da obra, recheada de composições tensas de acordes desarmônicos, e até músicas clássicas que caem bem com o momento.

A direção de arte nos ambienta perfeitamente na casa do casal, onde todos os móveis e objetos de cena parecem carregar consigo várias histórias e passados diferentes. Tudo isso se junta à uma sincronização de som impecável, desde a captação direta até o foley e a mixagem, fazendo a obra parecer real, tangível.

Dispondo de atores experientes e uma equipe técnica empenhada, Frederico Machado mostra o ápice de sua competência ao moldar um filme com tanto carinho como esse. Cada canto de cada plano conduz o público para o objetivo pretendido, nos forçando a acompanhar a vida de um casal sem nome, mas com muita presença. Um casal que anseia pela vida, pela satisfação, por um coração que preencha tal vazio tão desgastante.

Lamparina da Aurora é um suspense que vai além dos princípios audiovisuais, se tornando uma pintura cinematográfica, uma escultura dramática e, portanto, uma obra de arte atemporal, por mais abrangente que a frase soe. Imperdível para os fãs de um cinema autêntico, experimental, onde os corpos falam e o diálogo é abolido. Um longa-metragem feito não para ser compreendido, mas sim sentido, absorvido, refletido e interpretado livremente. Elaborado e filmado com esmero, deve também ser visto com esmero.

FICHA TÉCNICA
Direção e Roteiro: Frederico Machado
Produção: Lume Filmes e 13 Films
Elenco: Antonio Saboia, Buda Lira, Vera Leite
Fotografia: Frederico Machado
Arte: Guilherme Verde, Dida Maranhão
Som: Daniel Costa, Danilo Vale
Montagem: André Garros
Gênero:
Suspense / Drama
Duração: 75 min.

João Pedro Accinelli

Amante do cinema desde a infância, encontrou sua paixão pelo horror durante a adolescência e até hoje se considera um aventureiro dos subgêneros. Formado em Cinema e Audiovisual, é idealizador do CurtaBR e co-fundador da 2Copos Produções. Redator do Cinematecando desde 2016, e do RdM desde 2019.

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