Crítica: Unicórnio

Crítica: Unicórnio

Adaptado livremente dos contos de Hilda Hilst, o segundo longa de Eduardo Nunes traz para a tela história sensível e cinema em sua melhor forma

Imagem do filme 'Unicórnio'

Com estreias de filmes nacionais semanalmente nos cinemas brasileiros, ainda é difícil se deparar com um tipo de cinema experimental, sensorial e de livre interpretação. Estamos acostumados com roteiros mastigados, de fácil digestão. Felizmente hora ou outra aparece um Unicórnio pra nos deixar curiosos e nos permitir absorver muito mais do que uma simples história.

Após seu pai deixar a casa, Maria (Bárbara Luz) e sua mãe (Patrícia Pillar) precisam se virar como podem e tomar conta do lar. Enquanto lida com as inseguranças e descobertas de sua idade, Maria ainda se depara com a chegada de um criador de cabras local (Lee Taylor), que passa a ter contato com ela e sua mãe. Por meio de sonhos, devaneios e sentimentos, essa relação entre os três pode resultar em sérios conflitos.

O ambiente inóspito (por vezes até onírico), no qual acompanhamos um recorte da infância/adolescência da personagem principal, se mostra como um personagem por si só. O presente azul do céu e o vasto verde das árvores banham os cenários de imensidão e incertezas. Do início ao fim, o público se depara com uma indefinição espacial e temporal, que dá credibilidade à trama, e a torna plausível em qualquer momento da história e qualquer lugar do mundo.

A não necessidade de se auto explicar em nenhum momento é algo que particularmente me instiga. Põe minha mente a pensar, a criar. É como a fantástica experiência gerada pelo filme Lamparina da Aurora (2017), de Frederico Machado. Esse cinema reflexivo, além de se destoar do enfoque comercial, agrada e satisfaz os sentidos de um cinéfilo ansioso por respirar cinema com apenas imagens e sons. As dúvidas e sensações de Maria são pontos que movem o interesse do público durante o filme todo. O criativo e trabalhoso desenho de som proporciona uma imersão no universo propriamente vivido por Maria. Um exemplo disso é quando passamos a ouvir um som abafado assim que a personagem tapa seus ouvidos, entre outros detalhes das cenas.

Ainda que muito bem interpretada por Bárbara Luz (que encanta com seus olhares distantes) e com uma forte sensibilidade em suas ações, Maria, por ser peculiar e singular demais, pode afastar o espectador de uma possível identificação com a vivência e sentimentos da personagem. É um risco que Eduardo Nunes assume ao adaptar dois contos (Matamoros e Unicórnio) para o cinema. É, por fim, curioso ver como possivelmente abdicar de uma identificação com o personagem principal não gera um distanciamento tão impactante. Através de elementos de roteiro sutis e um apuro audiovisual, a direção consegue manter a atenção do público diante de uma narrativa bem construída.

É muito prazeroso observar a essência constante dos quatro elementos (fogo, água, terra e ar) na obra de Nunes. A presença das chamas das velas e dos lampiões traduzem o calor familiar contido em pequenos pontos da casa de Maria, enquanto os ventos das montanhas, as árvores e os frutos representam a natureza do campo de maneira autêntica, além de refletirem a calmaria da personagem principal, que se sente segura e livre quando está sozinha, ao ar livre.

Além de todas metáforas e subjetividades que a direção possibilita, Unicórnio conta com uma linguagem própria que chama a atenção desde as primeiras cenas, de um jeito convidativo. Os planos longos de aproximação, a harmonia dos figurinos e objetos de cena com os cenários e paisagens, a captação de som seca e orgânica e até a música sobrecarregada dão espaço e tempo para o espectador se familiarizar com a atmosfera daquela região, e com o ritmo do filme.

Todos esses aspectos, em conjunto, tendem a trazer sentimentos de dúvidas e prazer visual aos olhos de quem assiste, assim como as exatas sensações de Maria (ainda que não nos identifiquemos com suas intenções e objetivos).

É possível definir Unicórnio como um filme repleto de descobertas. Tanto da personagem principal, quanto do próprio espectador. Descobrimos novas formas de se conectar com uma história e permitir que nosso imaginário nos guie de maneira pessoal, e acompanhe a trajetória de uma personagem bastante curiosa, que por sua vez parte em busca da descoberta de sua sexualidade, sua importância naquele meio, e a das pessoas que a rodeiam. Realmente, o cinema nacional independente não deve nada a nenhum outro tipo de cinema feito no exterior.

João Pedro Accinelli

Amante do cinema desde a infância, encontrou sua paixão pelo horror durante a adolescência e até hoje se considera um aventureiro dos subgêneros. Formado em Cinema e Audiovisual, é idealizador do CurtaBR e co-fundador da 2Copos Produções. Redator do Cinematecando desde 2016, e do RdM desde 2019.