Crítica: Millennium: A Garota na Teia de Aranha
A hora e vez de Lisbeth Salander
Um dos motes da obra de João Guimarães Rosa era a “hora e vez”, que consistia em recurso narrativo no qual os protagonistas dos enredos criados pelo escritor chegavam a um momento de ruptura na história em que precisavam acertar as contas com algum aspecto mal resolvido do passado – algo como um momento de decisão na vida.
Apesar de não haver nenhuma relação direta entre Guimarães Rosa e Lisbeth Salander, anti-heroína da saga Millennium, criada pelo jornalista sueco Stieg Larsson e mantida por David Lagercrantz após a morte do idealizador, em 2004, ela tem a sua “hora e vez” em Millennium: A Garota na Teia de Aranha.
Em âmbito estético, a obra, dirigida por Fede Alvarez (de O Homem nas Trevas), tem fotografia semelhante à de Millennium: Os Homens que não Amavam as Mulheres, primeiro filme norte-americano baseado na saga literária, graças ao clima gélido da Suécia – a fotografia voltada às cores frias não é por acaso.
Ainda que a releitura de Salander, desta vez interpretada por Claire Foy, tenha semelhanças com a personagem interpretada por Rooney Mara no primeiro filme da série, as novas versões dos jornalistas Mikael Blomkvist e Erika Berger destoam muito das abordagens feitas, respectivamente, por Daniel Craig e Robin Wright. Parte importante do impacto inicial é creditada aos atores Sverrir Gudnason e Vicky Krieps, visivelmente mais jovens do que os dois atores – e a estranheza pode ser estendida também à imagem que leitores dos livros criaram dos dois personagens. Ainda assim, a atuação de Gudnason na pele de Blomkvist não deixa a desejar.
Claire Foy convence no papel de Salander, que se apresenta como o arquétipo do que se espera de uma anti-heroína: não se prende a convenções sociais para fazer o que julga ser certo, o que é justiça no caso dela. Apesar da fúria e os métodos violentos – e não letais, é importante ressaltar – serem direcionados a pessoas que têm traços significativos de vilania, como no caso de um empresário com histórico de agressões contra a esposa e contra prostitutas com quem teve relações extraconjugais, ela mostra, à sua maneira, compaixão com as vítimas desses mesmos caras. Vale dizer que parte importante de sua fama veio à tona graças às reportagens escritas por Blomkvist sobre ela para a revista Millennium.
O teor subversivo e ciberativista de Lisbeth Salander a coloca no radar de Frans Balder (Stephen Merchant), criador do software Firewall, desenvolvido para a NSA (Agência Nacional de Segurança), do governo dos EUA, para acesso a um grande arsenal bélico, cujo funcionamento é baseado na linha de raciocínio de seu filho, August (Christopher Convery) – Balder arrepende-se de sua criação e a contrata para hackeá-lo e, posteriormente, destruí-lo. Todavia, o feito a coloca no radar dos Aranhas, grupo de assassinos comandado por Camille (Sylvia Hoeks), sua irmã. Lisbeth sofre um atentado, do qual consegue escapar, mas é convidada para uma trama ainda maior.
Ed Needham (Lakeith Stanfield), agente da NSA, percebe o roubo dos dados do software, descobre que autora do ciberataque é sueca e decide ir ao país para matá-la. Ainda, Balder julga ter sido lesado por Salander e a denuncia à polícia sueca. Para completar, Camille coloca os seus capangas na cola da irmã para promover um acerto de contas com o passado, que se revela perturbador conforme a narrativa se desenvolve. Em meio a tantas confusões simultâneas, resta a Lisbeth recorrer aos auxílios de Blomkvist, com quem não falava havia anos, e de Plage (Cameron Britton), seu amigo hacker.
A história de Millennium – A Garota na Teia de Aranha traz pontos interessantes e tem como ponto alto as atuações dos atores, em especial Claire Foy, e a trama psicológica, em grande parte fomentada pelo comportamento enigmático de Lisbeth e pela igualmente intrigante relação entre ela e Blomkvist. Contudo, as cenas de ação, por mais que tenham sido bem construídas, parecem ser saídas de filmes da franquia 007 em alguns momentos e, como consequência, inverossímeis em certa medida.