Crítica: O Rastro

Crítica: O Rastro

O terror é provavelmente o gênero menos explorado em territórios nacionais, além de ser um estilo evitado por muitos expectadores, que, por traumas ou medo (de sentir medo), decidem fugir das telas quando se trata de levar sustos. Os adoradores do gênero normalmente preferem ir aos cinemas para assistir grandes produções americanas cheias de caras feias e sustos baratos, ainda que uma pequena parcela aprecie um terror psicológico mais “aprofundado”, com aspectos elaborados como a fotografia, direção de arte e movimentos de câmera que elevam a qualidade do filme. A graça de tudo isso, é que a mais nova obra de terror brasileira faz uma mistura com todos esses elementos e traz para o cinema uma história misteriosa com críticas políticas ao poder e à corrupção.

João Rocha (Rafael Cardoso), um jovem e talentoso médico em ascensão, acaba encarregado de uma tarefa ingrata: supervisionar a transferência de pacientes quando um hospital público da cidade do Rio de Janeiro é fechado por falta de verba. Quando tudo parece correr dentro da normalidade, Julia (Natália Guedes) uma das pacientes, criança, desaparece no meio da noite, levando João para uma jornada num mundo obscuro e perigoso. Enquanto isso, Leila (Leandra Leal), esposa de João, passa de preocupada para envolvida no caso, tentando fazer de tudo para que seu marido não corra nenhum perigo.

O Rastro é impecável artisticamente: a fotografia azulada transmite perfeitamente o mundo confuso e pavoroso que João adentra; a arte do filme, com tons frios, fazem do cenário do hospital um ambiente destruído e perverso, que esconde segredos em cada canto; e, finalmente as ferozes atuações de Rafael e Leandra, que trouxeram para o terror uma identidade dramática surpreendente, digna de inúmeros aplausos. Os coadjuvantes Jonas Bloch e Cláudia Abreu também merecem destaque, pois souberam engrandecer seus personagens, que apenas por suas falas já conquistam a atenção do público.

O roteiro do filme, escrito por André Pereira e Beatriz Manela, pode ter sido o único defeito do filme. O trailer e a sinopse sugerem uma possível relação entre João e Júlia, quando na verdade a história não procura se aprofundar nisso, e por fim acaba tomando outra direção que potencialmente confunde o público, deixando-o cansado (ainda que o instigue em alguns momentos). O roteiro consegue ser concreto e fechado, mas isso só ocorre no final, e joga o expectador para outra narrativa que pode até ser considerada uma espécie de virada imprevisível (o famoso twist), porém é ineficiente.

O problema é que o material para digerirmos o terceiro ato do filme nos é apresentado de maneira apressada, talvez até sufocante, e embora faça sentido e não nos deixe dúvidas, ainda fica o gosto de que foi mal finalizado, ou que a resolução do filme se encaixaria melhor caso o mesmo fosse conduzido através de um contexto dramático. De forma geral, há uma substituição de trama que pode angustiar alguns expectadores que se interessaram pela premissa inicial. Sinto-me obrigado a comentar sobre algumas cenas desnecessárias que mais complicam do que explicam, e que ao final do filme mostram-se dispensáveis para a narrativa. Ótimos exemplos são as possíveis “visões” ou sonhos que Leila possui com Julia, sendo que as duas nunca chegam a se relacionar durante o longa.

Contudo, o que o roteiro tem de problemas, os efeitos sonoros têm de qualidades. O som do filme é impressionante, sabe ser tenso e torturante nos momentos exatos, abusando da nossa apreensão e, por fim, nos deixando satisfeitos. Acordes crescentes e notas altíssimas andam juntos numa mixagem fantástica, e constroem uma aflição gigantesca no expectador, algo que nos remete ao revolucionário terror chamado A Bruxa (2015). Sem falar dos picos instantâneos que criam jump scares satisfatórios, que embora sejam simples, nos pegam de jeito e nos causam sustos imprevisíveis, nos lembrando dos filmes convencionais de terror que assustam qualquer expectador despreparado. É exatamente aí que O Rastro consegue ser tão convincente: em misturar o terror assustador com o suspense psicológico. Assim como disse o diretor J.C. Feyer, isso tudo vem de referências clássicas como O Iluminado (1980) e de referências contemporâneas como o australiano O Babadook (2014).

O filme tem sim seus defeitos de roteiro, mas garante um ótimo entretenimento, e merece ser conferido por todos amantes de terror e suspense. É uma obra para desfacelar o preconceito com o terror brasileiro, para mostrar que nosso país é sim capaz de criar bons filmes com temáticas aterrorizantes e efeitos visuais/sonoros incontestáveis. Precisamos valorizar O Rastro, pois ele serve como mais um visível pioneiro para o terror brasileiro contemporâneo, assim como foi O Caseiro (2016), algo que pode atrair a visão do mundo internacional para nosso cinema de gênero, que a cada ano se mostra mais abrangente, dispondo de uma pluralidade admirável.

Eu, como futuro cineasta, torço para que nós, brasileiros, passemos a olhar para nosso cinema de forma diferente, que conheçamos a história de nosso país e sua reflexão nos meios artísticos e audiovisuais. Nem todos gostamos das mesmas coisas, mas reconhecer a qualidade de algo é completamente diferente de gostar. Não deveríamos julgar sem conhecer, ignorar sem tentar, ou engolir sem mastigar. Grandes produções como O Rastro devem ser consideradas um marco na história do cinema brasileiro, principalmente por dispor de um orçamento altíssimo (7 milhões de reais) em comparação com a nossa média de produções nacionais.

FICHA TÉCNICA
Direção: J.C. Feyer
Roteiro
: André Pereira, Beatriz Manela
Elenco: Rafael Cardoso, Leandra Leal, Claudia Abreu, Felipe Camargo, Jonas Bloch, Natália Guedes, Alice Wegmann
Produção: Malu Miranda, André Pereira, Bia Caldas
Fotografia: Gustavo Hadba
Som: José Louzeiro
Gênero: Suspense/Terror

João Pedro Accinelli

Amante do cinema desde a infância, encontrou sua paixão pelo horror durante a adolescência e até hoje se considera um aventureiro dos subgêneros. Formado em Cinema e Audiovisual, é idealizador do CurtaBR e co-fundador da 2Copos Produções. Redator do Cinematecando desde 2016, e do RdM desde 2019.