Crítica: Os Fantasmas de Ismael

Crítica: Os Fantasmas de Ismael

Apesar de premissa tentadora e ótimas atuações, obra conta com roteiro intrincado e estraga-prazeres

A história do filme acompanha Ismaël (Mathieu Amalric), um cineasta que, após um longo tempo, voltou a amar. Traumatizado devido ao súbito desaparecimento de sua esposa, Carlotta (Marion Cotillard), ocorrido há 21 anos, ele enfim consegue ter um relacionamento duradouro com a astrofísica Sylvia (Charlotte Gainsbourg). Entretanto, a reaparição de Carlotta abala não só o relacionamento, como a própria estabilidade alcançada por Ismaël.

O primeiro problema (porém não o maior) de Os Fantasmas de Ismael que posso pontuar é Ismaël. O personagem principal não é dotado de atrativos suficientes para que o público se identifique ou mesmo se simpatize com suas intenções. A princípio pode parecer uma escolha narrativa do roteiro, que opta por apresentar e desenvolver o personagem com o tempo, por meio de flashbacks ou algo do tipo, mas não é o que acontece. A ausência de uma trajetória explicita e envolvente na vida de Ismaël causa um distanciamento com o espectador. Não sabemos por que aquele personagem está ali, por que faz o que faz e por quanto tempo pretende continuar fazendo. Seus propósitos são sempre embaçados aos nossos olhos e o que impede o personagem de ser completamente mesquinho é a meticulosa atuação de Mathieu Amalric, que literalmente “dá vida” ao personagem, que sem uma atuação à altura estaria morto (no sentido mais brusco da palavra).

Sinto que conhecemos mais Sylvia e Carlotta que o próprio Ismaël. Sylvia, apesar de não termos um contexto de seu passado ou tantos detalhes de sua personalidade, se torna mais interessante que o protagonista. E com Carlotta, por sua vez, é onde o público pode se sentir satisfeito, pois além de ter um maior aprofundamento em sua história de vida, é provavelmente a personagem mais misteriosa e intrigante do filme – e possivelmente o acerto mais notável do roteiro. Porém, para além dos personagens, é inegável que Amalric, Cotillard e Gainsbourg formam um dos trios amorosos mais interessantes do cinema francês em anos (pelo menos nas atuações). Principalmente Cotillard, que mais uma vez interpreta, de forma primorosa, uma personagem emocionalmente complexa, assim como fez em Um Instante de Amor (2017).

Por falar em Um Instante de Amor, outro ator do filme que aqui também marca presença é Louis Garrel, interpretando um dispensável e confuso personagem chamado Ivan Dedalus, que protagoniza uma das mais evidentes perturbações narrativas de Os Fantasmas de Ismael: a ausência de coesão entre a história principal e os possíveis “arcos simultâneos” (que aparecem somente para gerar uma espécie de dubiedade sobre os personagens e suas relações). Não sabemos a razão da existência de certos personagens na história, nem conhecemos suas influências na trama do trio. Como Ismaël é um escritor, imaginamos que seja algo entorno da história que ele está escrevendo, ou algo sobre sua própria personalidade, mas a forma como isso é inserido (pelo roteiro e pela montagem) é tão confusa que o filme se torna maçante e arrastado.

Ainda que com alguns desvios de atenção (arcos que aparentam ser cenas livremente interpretativas), a história funciona em certos momentos ao evidenciar os conflitos do trio visto a volta de Carlotta à vida de Ismaël. Além do interesse pela história principal, a direção acerta na fotografia, que inclui uma iluminação naturalista e o uso de “Dolly In” (movimento de aproximação da câmera no rosto dos atores) em diversas cenas, evidenciando as reações dos intérpretes em determinadas circunstâncias, e gerando mais intimidade com os personagens.

Embora o filme abuse de um desenvolvimento indigesto do enredo, proporcionando quebras de padrões narrativos de maneira arriscada e nada envolvente, vale a pena conferir Os Fantasmas de Ismael para conhecer um estilo de direção peculiar e se deparar com um tratamento de história diferente do que estamos acostumados, além de se impressionar com a habilidade interpretativa de atores franceses tão conceituados como Marion Cotillard, Charlotte Gainsbourg e Mathieu Amalric em sua melhor forma.

FICHA TÉCNICA
Direção: Arnaud Desplechin
Roteiro:
Arnaud Desplechin, Léa Mysius, Julie Peyr
Elenco: Mathieu Amalric, Marion Cotillard, Charlotte Gainsbourg, Louis Garrel, Alba Rohrwacher, László Szabó, Hippolyte Girardot, Jacques Nolot, Catherine Mouchet, Samir Guesmi
Produção: Pascal Caucheteux, Vincent Maraval
Fotografia: Irina Lubtchansky
Montagem: Laurence Briaud
Música: Grégoire Hetzel, Mike Kourtzer
Gênero:
Drama / Romance
Duração: 135 min.

João Pedro Accinelli

Amante do cinema desde a infância, encontrou sua paixão pelo horror durante a adolescência e até hoje se considera um aventureiro dos subgêneros. Formado em Cinema e Audiovisual, é idealizador do CurtaBR e co-fundador da 2Copos Produções. Redator do Cinematecando desde 2016, e do RdM desde 2019.