Crítica: Projeto Flórida

Crítica: Projeto Flórida

Com atuações soberbas, filme de Sean Baker enaltece a infância e desmistifica o paraíso turístico de Orlando

Em 2015, um cineasta independente americano ganhou reconhecimento por ter feito um filme inteiramente com um iPhone. Este cineasta é Sean Baker, e seu filme, Tangerine. O principal mérito dos dois, contudo, não é a astúcia técnica, mas sim uma abordagem empática e verdadeira de uma outra realidade, naquele caso a de duas prostitutas trans em uma tensa véspera de natal em Los Angeles. Agora, alguns anos depois, Baker volta às telonas com Projeto Flórida, intitulado em referência ao nome original da Disneylândia (em contraponto, o título original conota na palavra Project uma vivência mais rudimentar).

Apresentando uma história madura através dos olhos de uma garotinha pobre, Moonee, o longa resgata a mesma dualidade de cinismo e esperança que Baker trouxe ao excelente Tangerine (e também ao interessante Uma Estranha Amizade). Desta vez, há um embate ainda maior, visto que a cidade de Orlando aqui é representada de maneira igualmente glamourosa e sórdida. Glamourosa porque há o filtro da infância, que não permite entender tão facilmente a dura realidade. Sórdida pois a realidade, queira ou não, ainda está lá diante de seus olhos.

Mais do que em seus filmes anteriores, Baker tem a oportunidade de demonstrar seus talentos visuais. Aliado à fotografia de Alexis Zabe (Post Tenebras Lux), o diretor retrata os cantos menos elegantes de Orlando como se fossem atrações de um parque, com cores vibrantes e uma atmosfera lúdica, que é realçada pelas muitas movimentações horizontais da câmera (infelizmente, isso por vezes se quebra com escolhas menos sofisticadas de Baker para evocar realismo, com uma câmera demasiadamente zonza). Projeto Flórida então propõe ao espectador o desafio de ver duras verdades em contraste com lindas imagens, formulando um rico exercício de empatia para com seus personagens. O roteiro co-escrito por Baker e Chris Bergoch também se apoia nas sutilezas, revelando-se com comedimento e assim incentivando uma leitura atenciosa de cada um de seus pequenos momentos.

E que personagens! Além da radiante Moonee (Brooklynn Prince), tem-se aqui um leque memorável deles, que parecem ter vida além dos 115 minutos de filme. Os destaques são Halley (Bria Vinaite), a mãe problemática e carinhosa de Moonee, e Bobby (Willem Dafoe), o dono do motel onde Moonee e sua mãe estão prolongadamente hospedadas. A primeira é sem dúvidas uma das forças motrizes do enredo, com uma personalidade forte e um arco dramático mais ainda, este que é construído com eficiente discrição ao longo de momentos que podem ser equivocadamente tachados de encheção de linguiça. O segundo, então, se mostra como uma figura discretamente altruísta, e apesar do roteiro de Baker e Bergoch não se aprofundar em seus problemas pessoais, é uma presença sempre cativante.

O elenco então demonstra plena capacidade de dar vida a cada uma dessas figuras. Indicado ao Oscar por seu papel, Dafoe, que é conhecido dono de um semblante ameaçador, evidencia aqui seu lado mais doce, muitas vezes transmitindo a natureza compreensiva de Bobby apenas com seus olhos. Quando fala, então, o resultado é ainda melhor, como por exemplo no momento em que confronta um pedófilo que incomoda as crianças do motel. Já a estreante Vinaite dá um show de caracterização como Halley, construindo sua falha natureza com sinceridade e portanto conferindo-na um realismo arrebatador. O mesmo pode ser dito da pequena Prince, que aos 7 anos encara um papel desafiador com enorme sucesso.

Por isso mesmo é, em alguns momentos, tão duro assistir a Projeto Flórida. Todos sabem o que ocorre na vida de Moonee, exceto a mesma. Na montagem de Baker, não há existe tanto uma relação clara de causa e efeito entre o ponto de vista da garota e o mundo real até que este entre em conflito direto com sua existência, na forma de uma devastadora sequência na qual se vê a reação de Moonee justaposta à da mãe ao serem confrontadas por um momento traumático.

Ao final do século XIV, era cunhado o termo slice of life, um recorte da vida. Projeto Flórida consegue ser não apenas isso mas também sua própria realidade, na qual Orlando é uma mágica terra com fogos de artifício e sorvetes de graça, em que cada quarto de motel tem sua fábula. Portanto, o choque entre o mundinho particular de Moonee e o esmagador lado de fora não poderia ser melhor evocado que em um final simplesmente formidável, que na visão experimental de Baker é capaz de desarmar o mais rígido dos espectadores.


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Caio Lopes

Formado em Rádio, TV e Internet pela Faculdade Cásper Líbero (FCL). É redator no Cinematecando desde 2016.

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