Crítica: Vice
Quando o poder resulta em uma comédia de erros
Dick Cheney, vice-presidente dos EUA durante a era George W. Bush (2001-2009), entrou para a história pela porta dos fundos ao ser um idealizadores do plano, no mínimo equivocado ao extremo, para convencer a opinião pública de que o país deveria invadir o Afeganistão e o Iraque após os atentados terroristas de 11 de setembro de 2001.
Contudo, quais foram as motivações para o vice-presidente que não queria ser apenas uma figura decorativa ter tomado e bancado essa decisão? E, mais do que isso, de onde ele veio e como a sua vida o moldou para se tornar quem ele se tornou? Essas são as premissas de Vice, cinebiografia de Adam McKay, protagonizada por Christian Bale.
Se a reunião de McKay com Bale e Steve Carell, que participa do longa atual na pele do secretário de Defesa Donald Rumsfeld, havia sido certeira em A Grande Aposta, desta vez há algumas ressalvas significativas. Para começar, Vice parece ser um mashup das premissas do longa anterior de McKay com Os Candidatos, humor sem filtros que também leva a assinatura do diretor – a impressão é de que faltou um Will Ferrell a tiracolo neste novo filme.
Vá lá, Vice tem acertos, muito por causa de Bale, que conseguiu encarnar o jeitão ora nonsense e medíocre, ora ardiloso e desprovido de travas morais de Cheney, ao passo que as atuações de Carell como Rumsfeld e Amy Adams na pele da escritora Lynne Cheney são outros pontos altos da película. A mesma lógica vale para Sam Rockwell, que levou à telona a sua versão escrachada de George W. Bush – e olha que a versão real é risível.
Todavia, se os atores do longa têm méritos graças às suas atuações convincentes – isso sem contar que Bale colocou mais uma transformação corporal impressionante em seu currículo -, a narrativa soou forçada de tanto que se propôs a ser debochada. OK, a ironia é sempre um recurso bem-vindo para abordar qualquer assunto relacionado à política, mas a impressão que se tem ao assistir a Vice é que, em determinados momentos, Adam McKay ultrapassou a fronteira do sarcasmo e foi ao encontro do humor escrachado.
Ainda assim, o modus operandi de Dick Cheney é um capítulo à parte. Para começo de conversa, a maneira como ele foi retratado pode ser considerada a metonímia de como o poder de influência interpessoal pode ser superior à competência – assim foram os primeiros tempos da parceria com Rumsfeld, por exemplo.
Além disso, o maquiavelismo à moda de Cheney o fez passar por cima de qualquer limite ético em nome do poder quaisquer fossem as consequências. Bom, pautar as relações diplomáticas estadunidenses por meio do poder bélico para, entre outras coisas, agradar ao lobby das indústrias armamentícia e petrolífera, e até mesmo passar por cima dos direitos civis de Mary (Alison Pill), sua filha declaradamente homossexual antes mesmo de ele dar as caras na Casa Branca, dão a dimensão de que nem mesmo o cuidado com vidas alheias e o bem-estar da herdeira poderiam colocar freios no seu projeto pessoal de influência.
Por fim, Vice dá um panorama de quem é Dick Cheney e tem nas atuações dos atores alguns dos pontos altos da trama, com destaque inquestionável para Christian Bale. Ainda assim, por mais que McKay tenha a sua estética e o seu estilo argumentativo definidos, o que é um ponto positivo ao se pensar na identidade criativa de realizadores, é importante ele dosar os recursos da ironia e do sarcasmo para mantê-los em harmonia com a narrativa em vez de flertar com o humor nonsense – o que é bem-vindo e necessário, desde que seja a proposta básica de determinada produção, e não aparentou ser o caso desta vez.