Rebobinando: A Dama de Shanghai (1947)

Rebobinando: A Dama de Shanghai (1947)

Nem todo mundo gosta, nem todo mundo conhece, mas filmes Noir são bem importantes para a história do cinema, tendo inspirado cineastas de décadas em décadas. Inspirado nos padrões estéticos do Expressionismo Alemão, essas obras-primas cinematográficas estabeleceram conceitos como ambientes urbanos com uma fotografia contrastante, com muitas sombras e cenários pouco iluminados, além da narrativa similar que percorre todos os filmes do estilo, com mistérios, cigarros, crimes e mulheres fatais. Hoje relembramos de um clássico noir chamado…

“A DAMA DE SHANGHAI” (1947)

Dramas e suspenses investigativos são os gêneros mais vistos nos filmes noir, e A Dama de Shanghai não foge disso, se apoiando numa relação amorosa inquieta que move todos os acontecimentos da trama, que instiga o expectador e levanta seus personagens com suas intenções e objetivos. O uso da narração do protagonista (outra característica do estilo) se mostra envolvente, importante para expôr os sentimentos do personagem e suas decisões. A moralidade de todos é questionada de forma singular, e consegue dar ao filme um clima ambíguo, mas eficaz nas sensações causadas na platéia.

Michael O’Hara (Orson Welles) é um marinheiro que vê a bela Elsa Bannister (Rita Hayworth) passeando de charrete no parque. Ele a ajuda quando ela é assaltada por três homens, levando-a até seu carro. No dia seguinte Michael recebe a visita de Arthur Bannister (Everet Sloane), marido de Elsa e um advogado criminalista consagrado, que deseja que ele trabalhe em seu iate durante uma viagem que o casal fará. Inicialmente relutante, Michael aceita o trabalho devido à atração que sente por Elsa. Na viagem também está George Grisby (Glenn Anders), sócio de Arthur, que oferece a Michael US$ 5 mil para que ele o mate, algo que deixa Michael confuso, mas não o suficiente para recusar a proposta.

A partir desse momento, um mistério gigantesco ronda os passos de Michael, que confiante na ideia de George decide não se preocupar. O filme expressa a falsidade das pessoas e como suas relações podem ser baseadas no dinheiro, no romance e na traição. Orson Welles (também diretor e roteirista) interpreta um ótimo protagonista, enquanto Rita Hayworth mais uma vez se mostra uma femme fatale perfeita em todos os sentidos, desde seu ar sedutor até seu olhar dúbio e sua voz vaga. A atriz prova que mesmo depois do filme que marcou sua carreira com o personagem homônimo (Gilda), ainda soube interpretar outras personagens menos sorridentes como a loira Elsa. Os coadjuvantes Sloane e Anders (Arthur e George) agradam quando aparecem, e mantêm a tensão da história sigilosa por trás da narrativa.

Ângulos e movimentos incomuns de câmera se fazem curiosos, e caracterizam a direção de Orson Welles como uma das melhores que o cinema possui, sendo o homem responsável por outros clássicos como Cidadão Kane (1941) e A Marca da Maldade (1958). O roteiro surpreende nos diálogos e no enredo, portanto demandam uma grande atenção do público, que de qualquer forma não conseguirá nem piscar diante do desenrolar dinâmico do terceiro ato. A obra é uma aula de iluminação, pois sabe bem brincar com um jogo de luzes impressionante, que além de ser belo visualmente, conduz as emoções dos personagens.

Injustiça. Outro elemento que move os sentimentos do expectador, que por sua vez passa a torcer pela vida de Michael, embora questione sua moralidade. A busca pelo que é justo deixa-nos a sensação de que somos todos vítimas dos desejos e das armadilhas, e que podemos lutar com todas as forças para que as coisas corram conforme desejamos, mas nem sempre isso se concretiza. A paixão é uma arma poderosa, beneficia o sedutor e prejudica o seduzido, que passa a perder a razão e agir com o coração (isso fica explícito com a fala de Michael logo no começo do filme). Saber elaborar um suspense que cerque o protagonista e force o público a se sentir encurralado junto com o mesmo não é simples, e é preciso valorizar roteiros que alcançam tal proeza.

A Dama de Shanghai é uma obra valiosa que temos a nossa disposição, seja em mídias físicas ou digitais, mas o relevante é a obrigação que todos possuímos em conferi-la. O filme estimula nossa ceticidade, questiona nosso senso de justiça, e acima de tudo nos mostra como o mundo pode ser corrupto. A cada esquina existem pessoas que podem ser persuasivas, perigosas, com más intenções e de boa aparência. Que saibamos escolher nossos passos com cautela, e que a confiança seja nossa aliada, não inimiga. Finalizo esse texto relembrando da memorável cena dos espelhos em que Michael e Elsa se encontram logo nos últimos minutos do filme. O suspense dessa sequência é tão bem construído que merece jamais ser esquecido por nós cinéfilos, que apreciamos uma boa história de crimes passionais, e também pelos cineastas, que devem sempre se inspirar nas temáticas clássicas e adaptá-las de maneira original para nosso cinema contemporâneo.

João Pedro Accinelli

Amante do cinema desde a infância, encontrou sua paixão pelo horror durante a adolescência e até hoje se considera um aventureiro dos subgêneros. Formado em Cinema e Audiovisual, é idealizador do CurtaBR e co-fundador da 2Copos Produções. Redator do Cinematecando desde 2016, e do RdM desde 2019.