43ª Mostra – Crítica: Family Romance, LTDA
Realidades falsas para pessoas reais
O mercado de aluguel de atores para representar entes queridos, funcionários e, basicamente, qualquer pessoa com quem seja possível ter uma interação humana é algo real no Japão. No ano passado, um artigo da escritora Elif Batuman para a revista The New Yorker, traduzida na edição de dezembro pela Piauí, contou essa história, agora também reproduzida no longa Family Romance, LTDA, do veterano cineasta alemão Werner Herzog.
O filme acompanha a rotina de Yuichi Ishii, dono da empresa que proporciona essas experiências, contratado pela mãe de uma menina de doze anos para representar o pai da adolescente em encontros recorrentes. É uma situação inusitada por si só, e Herzog adiciona uma camada extra de estranheza ao narrar essa história propondo uma mistura entre ficção e documentário.
É certo que esse tipo de linguagem cruzada tem sido frequente no cinema autoral nos últimos anos, mas no caso de Family Romance, LTDA o recurso rende uma provocação totalmente coerente com o tema da obra. Será que ainda existe diferença entre o que é real e o que é inventado num mundo onde qualquer pessoa pode manufaturar a própria verdade, de acordo com a conveniência?
O diretor de 77 anos trafegou entre os dois gêneros durante a longa carreira, mas sempre em obras separadas. Aqui, ele opta por uma imagem digital e de câmera na mão, se apropriando da estética documental para mostrar o que é claramente uma encenação, como no caso dos encontros entre Ishii e a garota.
Numa das cenas mais divertidas do filme, uma aspirante a influencer contrata pessoas para atuarem como paparazzi e seguirem seus passos numa avenida movimentada de Tóquio, sem poupar flashes. O golpe dá tão certo que não demora muito para cidadãos comuns sacarem os celulares e pedirem selfies com a moça, acreditando estar diante de uma autêntica celebridade.
Nem é preciso ir muito longe. O protagonista se sente enganado ao saber que sua filha postiça o mostrou uma foto no Instagram dizendo ter sido tirada numa praia de Bali, mas na verdade a imagem havia sido registrada há poucos quilômetros da casa dela. Há muito de auto-ficção em cada post nas redes sociais, e Herzog quer saber onde isso vai parar.