Crítica: O Animal Cordial
Primeiro longa de Gabriela Amaral Almeida traz suspense com trama e personagens cativantes, além de muito sangue
Quão bem conhecemos nossos impulsos? Até onde podemos ir quando nossa paciência é testada ao limite? Talvez todos sejamos apenas “animais cordiais” esperando por um momento para explodir e mostrar o nosso pior, nu e cru. A diretora Gabriela Amaral Almeida, responsável por curtas-metragens premiados como A Mão que Afaga (2012), traz em seu primeiro longa-metragem reflexões sobre nossos comportamentos frente a situações de extrema tensão. Mas se trata de um thriller? Um terror psicológico? Um suspense de ação? Cabe à plateia tirar suas próprias conclusões.
O filme se passa num restaurante de São Paulo. O dono, Inácio (Murilo Benício), trata de forma rígida seus funcionários, como a garçonete Sara (Luciana Paes) e, principalmente, Djair (Irandhir Santos), o chef de cozinha. Numa noite, quando o expediente está prestes a se encerrar, o estabelecimento é invadido por dois ladrões (Humberto Carrão e Ariclenes Barroso), que fazem de reféns funcionários e clientes: Amadeu (Ernani Moraes) e o casal Bruno (Jiddu Pinheiro) e Verônica (Camila Morgado).
Conforme o estresse dos personagens aumenta, as erupções emocionais começam a aparecer e dão corda para uma sequência de conflitos e tragédias. Esse tipo de construção gradativa de suspense é a grande aposta de O Animal Cordial para envolver o público e o permitir ansiar pelo estopim das relações entre os funcionários, o dono e os clientes. Porém o filme não se mantém apenas nessa camada psicológica. Ele também satisfaz o gosto dos espectadores mais visuais, fortalecendo a obra com boas doses de sangue, cenas fortes e desespero dos personagens, que apesar de seus interesses e objetivos não muito claros, cativam com suas personalidades primitivas.
Produzido por Rodrigo Teixeira, o longa ainda promove observações em cima de questões sociais como a luta de classes, expondo através dos preconceitos de seus personagens todos as intolerâncias existentes no cotidiano brasileiro. Isso tudo faz do filme uma obra necessária que propõe a seu público questionamentos relevantes, não apenas um entretenimento (meio em que o filme também funciona). Porém, não só de acertos é composto o filme de Gabriela Amaral Almeida. Como já dito, a falta de motivação de alguns personagens (principalmente de Inácio e Sara) impede um maior entendimento do que levou essas pessoas a cometerem os atos que estão cometendo. Embora possamos compreender os gatilhos que impulsionaram o ápice da tensão entre eles, falta saber mais sobre o dia a dia desses personagens.
Durante o segundo ato do filme, o roteiro se inclina à uma tensão sexual entre Inácio e Sara, numa tentativa forçada de criar uma subtrama. Assim, o enredo perde força e acrescenta cenas que dão uma desacelerada na tensão, por momentos colocando em segundo plano o suspense do filme e angústia de Djair e dos clientes. Ainda assim, o roteiro juntamente com a caprichosa direção de Gabriela sabe conduzir a obra para um terceiro ato satisfatório.
Muito das interpretações dos atores no filme partem dos detalhes, do subjetivo, como os detalhes e segredos de uma receita de restaurante. É o olhar, o suor e o riso contido que transmitem as sensações de seus personagens, enquanto seus diálogos cumprem o papel de noticiar seus pensamentos, sem precisarem ser expositivos. Neste quesito, Luciana Paes, Irandhir Santos e até Camila Morgado (que possui menos tempo em cena) cumprem seus papéis com sucesso. Porém o espetáculo mesmo fica nas mãos de Murilo Benício, que dá tudo de si diante de um personagem descomedido e, ao mesmo tempo, cheio de nuances. Não é a toa que o ator venceu, junto com Daniel de Oliveira (Aos Teus Olhos), o prêmio de Melhor Ator no Festival do Rio de 2017.
Na obra, cada aspecto colabora entre si e ajuda a contar a história da melhor maneira possível. A trilha musical marcante de Rafael Cavalcanti toma forma por meio de cenários claustrofóbicos cobertos de tons frios (que refletem o ambiente de trabalho desalmado e abusivo do restaurante), onde o sangue dos personagens se evidencia e expõe o que de mais rudimentar todos nós possuímos. Desde o início do filme nos vemos envoltos em um admirável calor de intimidade com os personagens, devido aos planos próximos e um leve deslocamento da câmera, sem forçar nenhuma estilização.
O Animal Cordial é, além de uma representação do pior de nossa geração e de nossa paranoia, um longa selvagem e sagaz que prova que o cinema nacional de gênero só tem a crescer. Um suspense convidativo, que embora imperfeito sabe como tocar naquele lugar específico no coração dos fãs do gênero, e consegue fazer tudo isso com um “jeitinho brasileiro” e um gosto requintado pouco visto em nossas salas de cinema.