Crítica: A Mula

Crítica: A Mula

O canto do cisne de Eastwood

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Falar do icônico e multi laureado autor de cinema Clint Eastwood à esta altura é chover no molhado. Tentar exprimir seus trabalhos na grande tela (seja como ator, produtor, diretor e até compositor) é uma tarefa das mais árduas, e periga cometermos injustiças ao esquecermos certas obras de sua longeva carreira. Dito isso, sobra discorrer sobre seu mais recente longa-metragem, o “drama de crime” biográfico A Mula.

O filme conta a história baseada em fatos reais de Leo Sharp, que ficou famoso ao trabalhar para o cartel de drogas de Sinaloa no alto de seus oitenta anos de idade. Na adaptação cinematográfica, foi alterado o nome do verdadeiro para Earl Stone (Clint Eastwood) que é um veterano que lutou na Guerra da Coreia, e que fez sua vida como horticultor de flores, mais especificamente, lírios. Porém, com o passar dos anos e o crescimento da internet, Earl viu os negócios irem para o brejo, e com o casamento de sua neta se aproximando, fez o possível para tentar mudar a sua imagem perante a família que o rejeita nos dias atuais, assim, entrando para o mundo do tráfico de drogas como uma ‘mula’ que fica encarregada das entregas.

Não estranhe se, ao assistir A Mula, sentir uma ‘vibe’ meio Gran Torino, também estrelado e dirigido pelo autor octogenário. O roteiro pertence a Nick Schenk, que estreou na carreira como roteirista com o filme de 2008. E, se é possível argumentar uma ideia é a de que Schenk sabe escrever para Clint Eastwood interpretar. Vale notar que seu texto atual (de simbolismos especiais, como o cultivo de lírios, conhecidas como as flores da morte na cultura japonesa que é tão especial para o diretor muito influenciado pelo cinema de Akira Kurosawa), não se compara ao filme de dez anos atrás, assim tornando fácil afirmar que Gran Torino é a obra mais bela e excepcional de Eastwood neste século.

Todavia, à parte alguns diálogos ou situações expositivas que escorregam na escrita de Schenk, A Mula mostra enorme compreensão e arrojamento em seu material, assim que: um, estipula logo de início que estamos em uma obra mais solar do cineasta; dois, reflete um mundo mais remissivo, já que este é capaz de dialogar mais do que aviltar; e três, continua uma das sagas pouco exaltadas na filmografia de Eastwood que é a de ser um interrogador (na grande maioria, habilidoso) questionando os costumes sociais, aqui, especialmente na América.

O fator solar cria um terreno fértil para o diretor, de modo que houve um contraste claro de tons, que buscam alçar um ao outro da maneira shakespeariana à la Macbeth. Entretanto, um destaca-se mais que é o humor. Sim, A Mula será capaz de arrancar risos e até gargalhadas em alguns momentos, o que já é um ponto positivo para Nick Schenk e seu enredo. Ajuda muito neste quesito de ser uma obra mais solar, a fotografia de Yves Bélanger que trabalha pela primeira vez com Clint Eastwood, terminando uma parceria de dezesseis anos (e quatorze filmes) ao lado do cinematógrafo Tom Stern, que ajudou elevar alguns dos predicados mais notórios do autor de cinema.

Pelo segundo ponto do roteiro é onde encontramos uma amostra maior da inteligência emocional do cineasta. Em A Mula encontramos o mesmo Eastwood de sempre, sem filtros sociais, e que não tem medo de se arriscar com falas que geralmente geram polêmicas, ou alfinetam peles dos mais sensíveis.

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Contudo, o grande diferencial deste enredo é fazer disto uma via de mão dupla, assim que seu personagem também recebe (de braços abertos) as mesmas denominações estereotipadas que ele costuma pontuar nos outros. E mais: desta maneira, o diretor cria uma ponte para a empatia e o diálogo entre as pessoas, de diferentes tipos e gerações, além de deixar uma (intrépida) visão de mundo mais otimista em relação as associações humanas, vide a cena em que ele para na estrada para ajudar um casal que teve o pneu do carro furado, ou quando pede a ajuda para um dos membros do cartel para aprender a mandar mensagens de texto pelo celular.

Sobre Eastwood, lembremos: é um republicano conservador na política, que ao contrário do que foi escrito nas manchetes, não apoiou o atual presidente americano Donald Trump (do mesmo partido) nas eleições de 2016, e quando perguntado por um(a) repórter quem ele apoiaria naquele mesmo ano, respondeu – ‘Essa é uma escolha difícil, não é?’. Depois pontuando que apesar de concordar com a visão de Trump em relação ao politicamente correto, ambos os lados políticos tinham um certo grau de insanidade pelas escolhas do atual chefe de gabinete, de um lado, e Hillary Clinton do outro. Até, com afiada perspicácia, os comparou à dupla de comediantes atrapalhados e caricaturais Abbott & Costello.

Desta maneira, o cineasta coloca um grande asterisco no ideal de muro entre Estados Unidos e México, já que assim como Martin Scorsese o fez na brilhante sátira O Lobo de Wall Street, Eastwood também engrandece o nível do empreendedorismo americano, seja de mercado, social ou humano. Em resumo: é impossível domar ou reter a força de criatividade da América, tanto para os benefícios quanto para as amoralidades. A América sempre encontra um jeito!

Agora, vale pinçar alguns pontos baixos encontrados em A Mula que vão além de algumas frases expositivas. Todo o plot encabeçado por Bradley Cooper (formal) e Michael Peña (em atuação competente) acaba parecendo mais um elemento ‘filler’, pois quase nada consegue fazer para elevar a trama escrita por Nick Schenk. Também nada convence o trabalho de Alison Eastwood, filha do autor atrás e na frente das câmeras. Talvez o fato de ambos serem realmente família tenha atrapalhado a busca por sinergia entre os dois. Em compensação, a neta interpretada por Taissa Farmiga sai bem na foto.

Ao final do mais recente trabalho de Clint Eastwood fica difícil não imaginar que este seja seu canto do cisne. Talvez não apenas pelas lentes das câmeras, mas em geral mesmo. Recentemente, o cineasta reencontrou sua primeira filha Laurie, nascida nos primórdios dos anos 50, que foi entregue para adoção. Assim, a reconciliação da vida real também será vista, e talvez sentida em sua recente obra.

Steven Spielberg, cineasta e amigo pessoal de Eastwood talvez o tenha cunhado da melhor maneira possível. Spielberg diz que Eastwood como autor de cinema é o cara que tem a frente uma caixa de ferramentas inteiramente equipada com todo tipo de apetrecho, que abre a caixa, pega duas ferramentas em cada mão, fecha e vai trabalhar. E, é exatamente assim que será visto o filme A Mula, com toda a delicadeza e sensibilidade de um dos grandes contadores de história das grandes telas. Resta imaginar se Clint Eastwood terá o que seu personagem não sente que teve o suficiente: tempo.

Se tiver, poderemos ter mais de um autor que não é um herói, ou antagonista, ou mesmo o anti-herói (que interpretou inúmeras vezes no cinema). No fim, Clint Eastwood é um ser humano comum, como qualquer outro, que no final da estrada não esconde sua face craquelada que viu e sentiu as dádivas da vida, assim como penou pela culpa que carrega dentro de si. Que privilégio será se pudermos testemunhar quais serão as próximas ferramentas que o homem sem nome poderá usar!

Alexis Thunderduck