Crítica: A Vida Invisível
A profundidade do drama fraternal feminino
O amor entre duas irmãs afastadas pelo tempo e pelo espaço que ocupam, raramente foi tão bem retratado pelo cinema. Delicadeza e intimidade sobram nas mãos da direção de Karim Aïnouz, e transborda para todas as outras áreas que integram o audiovisual de A Vida Invisível. Poupando exageros desnecessários e trabalhando uma emocionante narrativa em ritmo lento, o roteiro (assinado por variados nomes) consegue construir e transmitir com naturalidade os anseios e receios de personagens femininas fortes, por quem geramos instantânea admiração. Com o intuito de conquistar o público de braços abertos, o filme resgata a nostalgia de um Brasil cinquentista, ao mesmo tempo que anuncia a infeliz e duradoura desigualdade social e econômica que assola o país.
Quando velhas cartas da irmã Guida aparecem e surpreendem Eurídice, uma senhora de 80 anos, memórias de sua vida durante os anos 50 no Rio de Janeiro lhe vêm à tona. Em tempos onde o conservadorismo reinava absoluto, Guida e Eurídice foram separadas pela vida e impedidas de se rever pela própria família. Enquanto tentavam se comunicar através de cartas, ambas buscavam de todas as formas seguir com suas vidas, enfrentando preconceitos, injustiças e inúmeros impasses sociais.
Conforme vamos tomando conhecimento das personalidades, gostos e condicionamento das personagens, desenvolvemos empatia por seus objetivos. Eurídice (Carol Duarte) é uma tímida mulher que sonha em se tornar uma pianista profissional, e que após se casar com um homem chamado Antenor (Gregório Duvivier), tem um filho e acaba deixando seu sonho em segundo plano. Já Guida (Julia Stockler), que se mostra extrovertida e apaixonada pela vida, após ter suas expectativas frustradas, se torna uma mulher marginalizada apenas em busca de garantir seu sustento. Ao mesmo tempo que nos maravilhamos pelas interpretações das atrizes principais, que brilham sem esforços em seus intensos papéis, nos convencemos facilmente do quão difícil é (e principalmente era) ser mulher em um mundo opressor. Diante das frustrações vividas por Eurídice e Guida, é praticamente impossível segurar a extrema revolta aos padrões e às normas da época.
Das dramáticas teclas de Eurídice à textura de “sujeira” presente tanto na primitiva e naturalista fotografia da experiente francesa Hélène Louvart quanto na construção de cenários urbanos poluídos, a obra emana uma sensação melancólica da realidade, aguçando nossos sentidos e nos permitindo experienciar a história e seus elementos de forma mais profunda, porém não prazerosa. Sem idealizar sexualmente suas personagens, o roteiro e a direção dão uma atenção carinhosa para os corpos das atrizes/personagens (despidos ou não) e seu poder de feminilidade, que se apresenta como um símbolo de resistência tanto nas cenas de sexo em que não se sentem satisfeitas, quanto ao amamentar seus filhos. Por meio destas e outras, Karim nos faz questionar sobre como a vida das mulheres se resume à nascer, servir, satisfazer e morrer. Com raríssimas oportunidades de ser feliz.
É espantoso que mesmo através de um recorte específico sobre o drama de duas irmãs, Karim Aïnouz consiga apontar, criticar e denunciar, de forma tão sutil e até didática, todo o machismo e o patriarcado de um período – que, por incrível que pareça, até hoje ainda deixa seus restos mais asquerosos em muitos de nós. Num cenário em que as diversas emoções como pena, raiva e angústia se dão como gotas de chuva caindo simultaneamente de um céu nublado e impiedoso, sentimos e absorvemos o que de mais verdadeiro, real, e acima de tudo feminino, existe nesta obra tão sensível. A Vida Invisível é uma forte história de amor e perda, regada de injustiças familiares e sociais, que compõem um quadro capaz de emocionar até o mais desalmado dos espectadores.