Crítica: Além das Palavras
Nos minutos iniciais de Além das Palavras, do diretor Terence Davies (Amor Profundo), tem-se a impressão de assistir a um teatro gravado, algo não muito fílmico ou adequado para uma sala de cinema. Felizmente, os ouvidos não tardam a acostumar com a prosa elaborada que Davies, também roteirista, tanto almeja em seus filmes. Logo se tem uma experiência marcante, que provoca a mente e a alma.
Com um roteiro completamente original, Terence Davies retrata a ordinária vida da poeta norte-americana Emily Dickinson, que, no século XIX, viveu a integridade de sua vida em Amherst, Massachussets, mas no papel deixou um legado nada menos que extraordinário em sua amplitude. Dickinson é vista brevemente como uma adolescente, negando submissão à fé católica, apesar de não negar a Deus. Não muito depois, em uma das cenas mais marcantes do ano, durante uma sessão de fotos, vemos a transição literal entre a jovem Dickinson (Emma Bell) e a mesma em sua meia-idade (Cynthia Nixon).
E quem melhor que Cynthia Nixon para assumir um papel tão espirituoso e carregado de audácia? Seguindo a contramão das demais biografias, aqui se vê uma personagem comprometida com uma vida tediosa, banal. É nas pequenas atitudes, porém, que vem à superfície o gênio rebelde de Dickinson, um mulher simultaneamente de seu tempo e à frente dele. Seja nos diálogos caprichados de Davies ou na impecável composição de Nixon, a revolta silenciosa de Dickinson ganha bela forma.
Nixon, conhecida principalmente por ser a Miranda de Sex and the City, tem recentemente surpreendido os cinéfilos com escolhas profissionais ousadas. Em 2015, deixou todos no chão como uma mãe doente no tristíssimo indie James White, em uma atuação que claramente exigiu forte dedicação. Em Além das Palavras, a atriz vai além e incorpora também a poesia de sua personagem, conferindo grande força aos questionamentos religiosos e sociais de Emily, também uma mera mortal.
Seu núcleo familiar, que consiste nos ótimos Keith Carradine, Jennifer Ehle, Duncan Duff e a surpreendente Joanna Bacon, permite que Nixon brilhe em suas interações com o microcosmo que conhece. Falando nisso, sua única amiga, interpretada excepcionalmente por Catherine Bailey, uma mulher jovem, sedutora e nada acometida, provoca em Emily um tardio despertar sexual, que agrega ainda mais ao drama de uma mulher que se colocou exclusivamente em primeiro plano, em uma época na qual se esperava, a princípio, o contrário.
Assim como no estupidamente belo Amor Profundo, Terence Davies mostra que pode contar uma história não só através de excelentes diálogos, como também pode fazê-lo através de imagens marcantes. Em certa cena, com o voiceover de Nixon recitando o famoso poema Because I Could Not Stop for Death, Davies mergulha no subconsciente de Dickinson, criando uma sequência fortemente onírica que casa a fotografia de Florian Hoffmeister com uma assombrosa canção do período. Davies apenas peca quando apela a um estranho didatismo, como na sequência de imagens da Guerra de Secessão, com direito a letreiros que trazem estatísticas e tudo mais, diluindo completamente a imersão de sua obra, mesmo que por alguns segundos.
Com uma duração que ultrapassa a marca das duas horas, Além das Palavras pode ser uma experiência desafiadora para o público acostumado a produções mais aceleradas e menos contemplativas. Mas para os dispostos, este novo longa do veterano Davies traz grandes recompensas em sua prosa e poesia, mesmo que seguindo uma métrica bastante específica. É refrescante notar, entre Paterson e este, uma valorização tão grande da jornada pessoal de personagens tão retraídas, neste caso pontuada pelo anticlímax da morte. E se isso não te agrada, bom, Guardiões da Galáxia Vol. 2 está aí…
FICHA TÉCNICA
Direção: Terence Davies
Roteiro: Terence Davies
Elenco: Cynthia Nixon, Keith Carradine, Jennifer Ehle, Joanna Bacon, Duncan Duff, Catherine Bailey, Emma Bell
Fotografia: Florian Hoffmeister
Montagem: Pia DiCiaula
Duração: 125 min
Distribuição: CineArt Filmes
Gênero: Drama / Biografia
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