Crítica: Cargo

Crítica: Cargo

Apostando em thriller pós-apocalíptico de qualidade, Netflix traz Martin Freeman em sua melhor fase

Logo em seu pôster de divulgação, Cargo nos apresenta a frase “o futuro é frágil”, e se não for ousar demais, eu digo que o presente também é. O filme australiano extrapola um mundo pós-apocalíptico e enigmático que mostra suas faces devagar, mas o que está por trás de toda essa metáfora é a relação dos humanos entre si e o espaço que eles ocupam. O individualismo e a pretensão sempre fizeram parte de nossa história – a única diferença é que hoje isso é camuflado. A fragilidade proposta pela frase está subentendida na falta de compaixão pelo próximo, na única e suprema busca pela sobrevivência a qualquer custo. São nesses instintos quebradiços que moram nossas fraquezas e defeitos. O roteiro aproveita um tema profundo para ambientar o espectador em uma era distópica e sem esperanças (pelo menos para a maioria da população).

No filme, acompanhamos Andy (Martin Freeman) e sua corrida contra o tempo para salvar sua filha. Infectado por um vírus, ele tem apenas 48 horas para encontrar um lugar seguro a fim de proteger a criança. A salvação que o pai procura pode estar em um tribo aborígene isolada, mas para ter acesso ao grupo ele terá que ajudar uma jovem indígena em uma missão perigosa. No caminho, Andy se depara com vários sobreviventes, alguns dispostos a ajudar, e outros buscando apenas continuar com vida, não importa os custos.

Curiosamente, não me lembro da última vez em que a direção de um filme, realizada de maneira colaborativa entre duas pessoas, conseguiu me impactar tanto. E acredite, não foi com os irmãos Coen ou com as irmãs Wachowski. Presenciamos aqui uma interessantíssima construção do suspense, com elementos do drama e dos thrillers de ação. Imergimos desde a primeira cena e continuamos com os olhos grudados na tela até o final, querendo saber como (ou se) Andy vai conseguir garantir sua segurança e a de sua filha. Apesar de todo o elenco estar de parabéns, quem carrega as melhores cenas do filme nas costas é Martin Freeman, em atuação primorosa que compõe um personagem angustiado e preocupado – além de um pai que não perde as esperanças de salvar sua filha.

Na maior parte do filme os personagens se veem imersos em locações externas diante de um sol ardente. Isso reflete o ambiente hostil que eles se encontram, cheio de perigos e riscos que podem ocasionar na pior da hipóteses: a morte. Com base em uma linguagem dinâmica de movimentos de câmera e planos curtos (destaque para alguns enquadramentos que tiram o fôlego), Cargo não dificulta a compreensão do espectador e busca a todo momento deixá-lo a par das emoções sentidas pelos personagens, algo que é muito bem transmitido. Sentimos a raiva, a revolta, a tristeza e a ansiedade de Andy o tempo todo. Claramente é mais um mérito de Freeman, mas fica evidente a parcela de importância do roteiro, que soube caracterizar seu personagem principal de forma rápida e eficaz.

Martin Freeman, com seu papel dramático e denso, prova mais uma vez que seus tempos como Tim Canterbury (The Office) ficaram pra trás. Mas não somente ele faz a festa do público. A estreante atriz chamada Simone Landers dá um show interpretando Thoomi (a já citada jovem indígena), e entrega uma forte atuação para alguém de sua idade, mostrando que tem talento para o drama. Além da imediata e duradoura empatia que criamos por Andy e suas intenções, a obra estabelece um ritmo de tensão que não sobrecarrega e nem desvaloriza a trama.

Com um roteiro sugestivo que ao mesmo tempo que faz o espectador ligar os pontos e montar seu próprio quebra-cabeças, o filme também faz questão de distribuir todos os ingredientes desse quebra-cabeças. Cargo é um misto de sensações pronto para te colocar no lugar do protagonista e envolver com um belo equilíbrio de medo e esperança. Aparentemente, a Netflix acertou mais uma vez em uma produção original que não só instiga nosso gosto pelo universo pós-apocalíptico, mas também nos emociona com uma história de sobrevivência bem articulada.

FICHA TÉCNICA
Direção: Ben Howling, Yolanda Ramke
Roteiro:
Yolanda Ramke
Elenco: Martin Freeman, Anthony Hayes, Caren Pistorius, David Gulpilil, Susie Porter, Kris McQuade, Bruce R. Carter, Natasha Wanganeen, Simone Landers
Produção: Russell Ackerman, Kristina Ceyton, Samantha Jennings, Mark Patterson
Fotografia: Geoffrey Simpson
Montagem: Dany Cooper, Sean Lahiff
Gênero:
Thriller / Drama
Duração: 105 min.

João Pedro Accinelli

Amante do cinema desde a infância, encontrou sua paixão pelo horror durante a adolescência e até hoje se considera um aventureiro dos subgêneros. Formado em Cinema e Audiovisual, é idealizador do CurtaBR e co-fundador da 2Copos Produções. Redator do Cinematecando desde 2016, e do RdM desde 2019.