Crítica: Chocolate

Crítica: Chocolate

Não, não é aquele filme da Juliette Binoche que você viu diversas vezes na TV. Também não é o filme da garota espadachim que procura vingança. Chocolate, 4º filme dirigido pelo ator Roschdy Zem, é talvez a produção de maior urgência que carrega o já tão usado título. Com o sempre excepcional Omar Syencarnando o protagonista homônimo, este filme francês conta a história de Rafael Padilla AKA Chocolate, que assume a alcunha ao se tornar o primeiro artista de circo negro da história. Mas antes, vamos voltar algumas casas.

A obra, apesar do foco no personagem titular, inicia-se sob o ponto de vista de Georges Footit (o surpreendente James Thierrée), artista de circo desempregado que procura uma vaga em meio a uma trupe de beira de estrada. Seus truques, apesar de sofisticados, não são mais considerados como atrativos, o que mantém o artista numa busca por renovação. Ao presenciar o carisma e fisicalidade de um certo artista negro, Footit propõe a este uma técnica inédita: recrutá-lo para um número feito em dupla, unindo o palhaço branco e o Auguste (o palhaço tolo). Quando tem uma resposta favorável do público na primeira demonstração do número, Footit e o negro (até este ponto do filme sem um nome) chamam a atenção do dono do Cirque Noveau de Paris e ganham a oportunidade de suas vidas.

Mas aí vocês, leitores, devem se perguntar: não há algo de estranho nisso? Um filme sobre o primeiro artista de circo negro, um estudo potencialmente complexo sobre o racismo, jogar logo de cara seus holofotes em mais um personagem branco, assim como é visto em inúmeras produções hollywoodianas (estou falando com você, Histórias Cruzadas)? Felizmente, este não é o caso. Ao assumir a alcunha (um tanto pejorativa) de Chocolate no Cirque Noveau, o personagem de Omar Sy ganha a obra e a domina até o fim, providenciando uma troca de perspectivas bastante necessária para um filme cuja história guarda tantas possibilidades para debates.

Chocolate, que passa por uma ascensão meteórica à fama, começa a arranhar o “bem-estar” de seus conterrâneos brancos. Compra novas roupas, uma casa na cidade, come nos melhores restaurantes e adquire até mesmo um automóvel (um luxo para qualquer um na década de 1910, na qual o filme é ambientado). Deixa de ser, segundo certo personagem do filme, o “bom-negro”, que serve os brancos, que os faz rir a qualquer custo, que “entende” seu lugar na sociedade. Note o excesso de aspas neste parágrafo, por exemplo. Mas estas visões absurdas e segregacionistas eram o senso comum em determinada época, principalmente em países colonizadores como a França.

Esta quebra com o papel de “bom-negro” permite que Chocolate, o filme e o homem, apresentem seus lados mais fascinantes. O rompimento ocorre durante o período no qual fica detido em uma prisão inóspita, por não possuir os documentos necessários para ser um cidadão francês. Divide a cela com outro “mau-negro”, um homem erudito, de ideias questionadoras e portanto perigosas para a hegemonia branca.

O trecho, apesar de apressado, mostra o protagonista deixando de ser Chocolate, o motivo de chacota, para voltar a ser Rafael, o escravo que, chocado, presenciou o próprio pai sendo feito de palhaço por seus senhorios. Tendo, como um Auguste, apanhado de seu parceiro branco inúmeras vezes para arrancar risadas de um público privilegiado, Rafael cansou de ser a piada. Quer ser admirado de verdade e procura esta renovação no teatro, tornando-se o primeiro intérprete negro de Otelo, que antes era interpretado por atores brancos em blackface.

Talvez eu esteja contando demais do filme, mas esta é justamente sua maior qualidade: trazer à tona uma história de extrema ressonância e importância sobre um homem cuja trajetória carrega um significado imenso para o estado das questões raciais, inclusive nos dias de hoje.  Apesar de algumas escolhas narrativas e estéticas batidas, como o incessante e pouco atraente uso de cross-fades em trechos de transição e uma condução exageradamente melodramática no último quarto do longa, o diretor Roschdy Zem ainda assim traz frescor e grande incisividade em sua abordagem. O fato de Zem também ser negro já deixa ainda mais evidente a carga de sua vivência no entretenimento e a relação entre esta e a de seu personagem-título.

Mesmo imperfeito, Chocolate é um filme que merece ser conferido. A jornada de Rafael Padilla é inquietante e cheia de momentos que provocam a mente, algo que se espera de uma obra com tal temática. Estabelece Roschdy Zem como um interessante condutor de atores e dá a Omar Sy mais uma chance de se consolidar como um dos intérpretes mais carismáticos do cinema atual.

Sendo o filme mais visto no Festival Varilux de Cinema Francês 2016, espera-se que consiga atingir um grande público com suas impactantes críticas.

O filme estreia em 21 de julho no Brasil!

 Trailer

Caio Lopes

Formado em Rádio, TV e Internet pela Faculdade Cásper Líbero (FCL). É redator no Cinematecando desde 2016.

Um comentário em “Crítica: Chocolate

Comentários estão encerrado.