Crítica: O Sacrifício do Cervo Sagrado
Um falso filme pessimista
Nos primeiros segundos em O Sacrifício do Cervo Sagrado, com a tela preta, há uma orquestra acompanhada de um coral. Mesmo não compreendendo o que aquelas vozes cantam, não é preciso muito para sabermos aonde pisaremos pelas próximas duas horas. O novo filme do diretor grego Yorgos Lanthimos é uma tragédia, das mais gregas.
O Sacrifício do Cervo Sagrado conta a história de Steven (Colin Farrell), cardiologista conceituado casado com Anna (Nicole Kidman) e pai de dois filhos, Kim (Raffey Cassidy) e Bob (Sunny Suljic). Steven tem contato frequente com Martin (Barry Keoghan), um jovem cujo pai morreu em sua mesa de operação. Ambos se dão muito bem, ao ponto de Steven decidir apresentá-lo a sua família. Mas quando Martin não recebe mais a atenção desejada, resolve se vingar do médico.
Quem viu O Lagosta já terá uma noção básica das estranhezas e esquisitices surpreendentemente hipnóticas do diretor Yorgos Lanthimos. Assim como no filme de 2015, o grego Lanthimos trabalha novamente com Colin Farrell, e assim como na primeira vez, o ator irlandês soube mergulhar com destreza nesse tipo de mundo ficcionalmente absurdista.
Louvável o talento e atenção para detalhes que Lanthimos mostra em seus filmes. Enquanto outros diretores se destacam em algumas categorias mais que outras (exemplos: Tim Burton e Guillermo del Toro, na arte; Terrence Malick, na fotografia; Clint Eastwood e Woody Allen, na direção de atores), o diretor grego opta por tentar manter-se o mais próximo de um equilíbrio entre os fatores, tornando seu filme um produto cheio para o espectador.
Compreender as peculiaridades de Yorgos Lanthimos em O Sacrifício do Cervo Sagrado será uma tarefa mais fácil aos que assistiram O Lagosta anteriormente, filme este que usa alegorias para criticar a superficialidade dos sistemas sobre relações humanas, principalmente ‘sites de namoro’ – isso dentro de uma história de amor, dentro de um filme distópico com muito humor negro. Que mistura… mas funciona! Essa mistura também dá certo com O Sacrifício do Cervo Sagrado, mas este um pouco mais limpo, com menos elementos.
O roteiro é baseado na última obra conhecida do dramaturgo Eurípides, Ifigénia em Áulide. Peça centrada em Agamemnon, líder da coligação grega antes e durante a Guerra de Troia, e sua decisão por sacrificar sua filha, Ifigénia, para agradar a deusa Artemisa (obs: procure por fotos da estátua da deusa Artemisa, se quiser entender o título do filme) e permitir que as tropas zarpassem para defender sua honra em Troia.
Já não era tarefa simples adaptar tal obra, mas Lanthimos foi audacioso o suficiente para usar essa história em um filme de terror. Contudo, não espere o tipo de terror mais comum do grande público com ‘jumpscares’, ou este da nova onda dos últimos anos, chamado por alguns de ‘pós-terror’.
Além de uma construção de grandes valores, que incluem escolhas simples mas pontuais, como o sobrenome da família (Murphy), como a lei que diz ‘que se algo pode dar errado, dará’, até a singularidade dos diálogos entre as personagens (obs: no cinema de Lanthimos pergunta-se muito!). Recentemente em uma entrevista, o diretor mexicano Guillermo del Toro deu uma declaração que diz ‘às vezes, as coisas mais brilhantes são as coisas que se encontram perto de serem consideradas ridículas’. Não apenas uma bela frase, mas certamente o combustível criativo para Lanthimos. Com sedimentada construção, riqueza de tratamento e sem medo do ridículo, o diretor eleva este filme.
A fotografia de Thimios Bakatakis também merece admiração, seja pelas maravilhosas cenas no hospital onde o personagem de Colin Farrell trabalha, com movimentos de câmera similares (que ficam entre a homenagem e o ‘rip-off’) ao de O Iluminado de Stanley Kubrick, até a escolha de alguns ângulos (cenas no quarto de casal e porão da casa de Steven). Mesmo o uso do tão mal falado ‘slow motion’, aqui, harmoniza muito bem.
Das virtudes do elenco no filme, certamente a maior delas é conseguir gerar atração com o texto de estranhezas da dupla de roteiristas. A habilidade do elenco todo é tanta que, nos primeiros 20 minutos – em que ainda procuramos nos situar nessa interlocução excêntrica – logo vão se naturalizando normalmente, e sente-se cada vez mais a proximidade à nossa forma de linguagem. O que era estranheza, se padroniza. Em essência, O Sacrifício do Cervo Sagrado é sobre a oposição entre homem e divino. A primeira e a última cena do filme exemplificam isso.
Em uma das cenas no primeiro ato, Steven e Martin estão almoçando e o garoto está comendo um sanduíche. Steven pergunta: ‘Você não vai comer as batatas fritas?’. Martin responde: ‘Deixo elas por último, pois é o que mais gosto, então deixo para comer depois’. As origens de Martin são misteriosas, mas Yorgos Lanthimos, com uma direção impecável, as faz presentes e aterradoras toda vez que o ator Barry Keoghan está diante da câmera, ou até mesmo quando ausente. Na cena em que logo após os exames indicam que não havia nada de errado com o filho de Steven, garoto e mãe descem pela escada rolante a caminho da saída, quando perto da porta, o garoto cai sem conseguir sentir suas pernas; aqui, a câmera é o olhar de Martin.
Em O Sacrifício do Cervo Sagrado, lamentamos nossa condição perante as contingências e caprichos fora de nosso alcance, mas como Kim, filha de Steven, provou: ainda podemos comer a batata frita primeiro… com muito ketchup.
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