Crítica: Vidro

Crítica: Vidro

Humanizar e conquistar

vidro critica

É incontestável que a produção de filmes de super-heróis é cada vez mais frequente em nosso mundo cheio de consumidores fanáticos por cultura pop de maneira geral. Mas, para alguns (me incluo nessa categoria), esses filmes estão se tornando repetitivos, com diversas semelhanças narrativas e estéticas, além de um uso exagerado de efeitos especiais que por sua vez ofuscam o brilho das interpretações dos atores e até impedem que a imaginação do espectador fale mais alto. Entretanto, é bom saber que temos por aí um gênio (incompreendido por muitos) que sabe fazer a diferença. Alguém que sim, cometeu erros como qualquer um, porém soube acertar em cheio suficiente vezes ao longo de sua carreira. Entre esses acertos, um deles é exatamente criar uma das melhores trilogias sobre super-heróis já feitas.

Há filmes que não podem ser separados de seu criador e esse é um desses casos, principalmente por ser uma produção que aposta tanto na expectativa e nostalgia do público. Por isso, peço que perdoe essa pequena introdução, mas acho necessário apresentar brevemente o diretor/roteirista de Vidro e sua relação com suas obras.

Estou falando de ninguém menos que M. Night Shyamalan, o homem por trás de obras cativantes e engenhosas como O Sexto Sentido (1999), Corpo Fechado (2000), Sinais (2002) e A Vila (2004). O cineasta é conhecido por trazer uma abordagem profunda de personagem que se baseia em suas próprias dúvidas e incertezas, e que consequentemente são muito bem transmitidas ao público, através de atuações convincentes e uma direção certeira, além do clássico plot twist (reviravolta inesperada) pelo qual o diretor e roteirista é tão lembrado em seus filmes. 

Shyamalan, apesar de alguns escorregões como A Dama na Água (2006), Fim dos Tempos (2008), O Último Mestre do Ar (2010) e Depois da Terra (2013), nos mostrou, desde A Visita (2015), que ainda é capaz de contar histórias de suspense uma forma original e criativa. Mas foi com Fragmentado (2017) que veio a sua grande “reviravolta” no cinema. Depois de quase 13 anos sem uma produção tão envolvente em seu currículo, Shyamalan trouxe um filme bem estruturado e repleto de cenas tensas. Por fim, descobrimos, na cena final, que o filme se passava no mesmo universo de Corpo Fechado. A confirmação da produção de um terceiro longa, fechando a trilogia iniciada há quase duas décadas, foi o suficiente para deixar os fãs do cineasta ansiosos como nunca.

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Finalmente, em Vidro, acompanhamos o já conhecido personagem David Dunn (Bruce Willis) usando toda sua força em uma busca incessante por justiça, sendo inclusive ajudado por seu filho Joseph (Spencer Treat Clark) a encontrar criminosos impunes. Nisso, após um confronto direto entre David e a Fera (personalidade de Kevin, interpretado por James McAvoy), ambos são levados para um hospital psiquiátrico, onde são apresentados à uma doutora chamada Ellie Staple (Sarah Paulson, muito bem inserida e aproveitada, ao contrário de seu papel em Bird Box), e passam a ser questionados sobre seus supostos super poderes e a ideia de que possam ser super-heróis. Quem também já estava na instituição é Elijah Price (Samuel L. Jackson), ou Sr. Vidro, o maior inimigo de David.

Enquanto David, Elijah e Kevin são testados e mantidos como prisioneiros, o roteiro logo encontra formas de desenvolver o arco de personagens como Joseph, que procura uma forma de mostrar que seu pai é inocente, e Casey (Anya Taylor-Joy), a protagonista de Fragmentado e única sobrevivente dos crimes de Kevin, que aqui passa a ter dúvidas quando é avisada que seu antigo algoz finalmente foi encontrado. Dentro de toda essa trama, é possível identificar os notórios elementos de suspense de Shyamalan, que nos deixam curiosos e ansiosos para vermos aqueles tão queridos personagens livres e em ação, ainda que reconheçamos o perigo que representam para a sociedade.

Mas o grande truque do filme está em saber controlar essa ansiedade do público com os pertinentes questionamentos e fatos apontados pela Dra. Ellie Staple, que parece determinada em provar o quão errados estão aqueles três homens. Isso tudo é uma dádiva aos olhos e ouvidos do público, que passa a refletir sobre os acontecimentos dos filmes anteriores, e até que ponto tudo aquilo é de fato sobrenatural. Aqui se vê o talento de Shyamalan em humanizar personagens que parecem tão diferentes (superiormente ou inferiormente) em relação às maioria dos humanos, e é exatamente essa humanização juntamente com o clima de suspense que faz de Vidro, e de toda a trilogia, obras tão especiais nesse meio fantástico de super-heróis.

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Samuel L. Jackson e Bruce Willis estão mais apagados em suas interpretações, ainda que possuam um bom tempo em tela. Spencer Treat Clark, com esforço, faz o possível para dar o mínimo de emoção ao seu personagem, mas quem mais se destaca são: Sarah Paulson, em uma ótima atuação capaz de criar facilmente raiva no espectador por seu personagem; Anya Taylor-Joy, que mesmo com poucas cenas em mãos consegue como sempre envolver o espectador com um olhar melancólico e sua expressão sincera; e principalmente James McAvoy, que quase consegue atingir os mesmo níveis de profundidade dramática de Fragmentado, interpretando suas 24 personalidades com ousadia e confiança. 

O roteiro de Shyamalan traz uma interessantíssima técnica de envolver o público que permite um enfoque particular de três gêneros diferentes em três arcos separados. O primeiro é o gênero de ação, representado por David e Joseph Dunn. Já o segundo é o suspense, trazido por Elijah em suas ações misteriosas pela instituição. E o terceiro e último podemos dizer que é o drama, encarnado por Casey e Kevin, que protagonizam as cenas mais emocionantes do filme. Claramente Kevin também joga com cenas de ação que exigem grande preparo físico e até nos faz rir com a personalidade de  Hedwig (como já fazia no filme anterior), mas é nessa pirâmide de gêneros que Vidro se constrói de maneira tão peculiar e eficiente.

As influências das histórias de heróis em quadrinhos (como em Corpo Fechado), o sentimento de claustrofobia (como em Fragmentado), além das dúvidas à respeito das condições sobrenaturais dos personagens são temas e elementos ainda presentes no novo filme. Mas a maior diferença entre este e seus dois filmes antecessores, é que Vidro não pode (ou ao menos não deveria) ser assistido antes dos dois primeiros, que podiam muito bem serem vistos separadamente e fazerem sentido da mesma forma. Isso não chega a ser um erro, mas é uma limitação ao filme, que restringe sua capacidade de ser compreendido aos fãs da trilogia ou aos fãs do diretor. E convenhamos, não são tantos como possuem as grandes franquias do cinema. 

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Embora notemos um excesso de diálogos (e flashbacks) expositivos que tentam frequentemente lembrar o espectador dos acontecimentos dos filmes anteriores, Shyamalan acerta mais uma vez com uma direção sábia e um roteiro bem amarrado, que garante o suspense dramático fascinante que conhecemos de seus primeiros filmes. Além disso, garante também não somente uma, mas várias pequenas reviravoltas surpreendentes, e com certeza a indispensável e rápida aparição do diretor em uma cena do filme. 

Vidro é o reflexo das manipulações humanas frente a ideias e concepções pré estabelecidas. Um questionamento ao que é justo e ao que é injusto. É um adeus à personagens com que tanto criamos empatia, e especialmente, é a certeza de uma trilogia bem realizada por quem conhece o terreno que pisa.

João Pedro Accinelli

Amante do cinema desde a infância, encontrou sua paixão pelo horror durante a adolescência e até hoje se considera um aventureiro dos subgêneros. Formado em Cinema e Audiovisual, é idealizador do CurtaBR e co-fundador da 2Copos Produções. Redator do Cinematecando desde 2016, e do RdM desde 2019.