Coluna do Matheus: “Mais ‘Homem-Aranha’, menos ‘Green Book'”

Coluna do Matheus: “Mais ‘Homem-Aranha’, menos ‘Green Book'”

Para um evento que prometia privilegiar histórias reais em tempos de Fake News, a cerimônia de entrega do Oscar de 2019 entrou para o anedotário como derrapada.

Mesmo sob todos os protestos da família do personagem retratado, o músico e compositor Don Shirley, e mesmo sob os protestos de quem conseguiu perceber de longe os inúmeros buracos de uma história supostamente anti-racista, Green Book – O Guia ficou com a estatueta de melhor filme – e causou revertério nas horas seguintes pelas redes sociais.

O filme de Peter Farrelly, até então conhecido por trabalhos como Debi & Lóide e Quem Vai Ficar com Mary?, se propõe a contar a história da amizade entre um motorista ítalo-americano cheio de preconceitos e um músico negro enquanto viajam até o sul dos EUA em uma época marcada pela violência e a segregação – a ponto de eles precisarem usar como referência um guia de lugares amigáveis a pessoas negras para poder dormir em paz.

O longa explora uma espécie de pedagogia da convivência para, no fim, fazer o espectador completar a travessia feliz e satisfeito na certeza de que:

1-) aquele tempo de horrores e proibições nada sutis ficou para trás;

2-) o ser humano ainda tem jeito;

3-) preconceito é apenas ignorância entre desconhecidos, nunca um discurso moldado em uma estrutura maior.

Dos oito indicados a melhor filme, seis eram inspirados em histórias e personagens reais. Green Book, o vencedor, era um deles. Com um detalhe: a família de Shirley jura que os dois personagens, interpretados por dois atores de primeiro escalão (Viggo Mortensen e Mahershala Ali) não eram assim tão próximos como o filme leva a crer.

E que Shirley não era um esquisitão afastado da família e alienado sobre “seu próprio povo”, como inúmeras vezes seu motorista insiste em dizer.

Mesmo sabendo de tudo isso, fiquei surpreso ao saber, nas horas seguintes à premiação, das reações ao que chegou a ser chamado de “pior melhor filme do Oscar”. Até então Green Book me parecia um filme só ok. Simpático até.

Saiba de nada, inocente.

Percebi, assim, que eu fazia parte daqueles que deveriam sair animados da sessão. Nessas horas, uma espiada fora do umbigo nunca faz mal.

Lembrei que, em um debate em forma de bolão do Oscar organizado por uma emissora de TV em Campinas, cheguei a ser repreendido, no bom sentido, ao mostrar uma certa condescendência com um filme notadamente condescendente.

Hamiton Rosa Jr., que participava do bate-papo comigo, argumentou que entrar em tal tema exigia outra postura: a postura de quem chega chutando a porta, como fez Spike Lee em Infiltrado na Klan, preterido na disputa.

Ele tinha razão, mas eu até então não havia atentado para isso.

Na dúvida, perguntei, nas redes sociais, os motivos que levaram tanta gente a detestar Green Book.

As respostas, para além da estética “Sessão da Tarde” (comentário comum de muita gente sobre o filme), mostram como, quando o tema é representatividade, há mais coisas entre o assento e a tela do que supõe a nossa branquitude.

Professora da rede pública no Espírito Santo, minha amiga Maria Gabriela Verediano alertou que, embora muitos atores e realizadores negros tenham sido laureados em várias categorias (atriz, ator coadjuvante, figurino, roteiro adaptado, etc), o peso político da escolha de Green Book é maior.

Para ela, a mensagem do filme é que o negro só será salvo se for dócil, educado, gentil; se aguentar as porradas com elegância e se for amigo do personagem branco, mas nunca em uma relação entre iguais: mesmo sendo o “patrão” da história, é Don Shirley quem ouve e obedece as ordens e enquadradas do homem branco. É ele, afinal, quem conduz a história, em mais de um sentido.

Outro problema apontado por ela é a construção da “alienação” do personagem em relação a seu povo, quando ele, na verdade, era envolvido com movimentos sociais e tinha relação próximas com nomes como Nina Simone e Martin Luther King. Por que isso não é contado em uma história supostamente real, em detrimento da relação com a (também, a certa altura, salvadora) família Kennedy?

O argumento ganha força na cena final (alerta de spoiler), quando, nas palavras da Maria Gabriela, “o cara negro sem família precisa do branco até pra ter um Natal aconchegante”.

Em sua página no Facebook, a filósofa e escritora Daniela Lima resumiu: “Green Book é sobre um homem branco que ‘salva’ um homem negro do racismo no Sul dos EUA, Nasce uma Estrela é sobre um homem que ‘salva’ uma mulher do ostracismo, quando dá condições para que ela se lance como cantora, Bohemian Rhapsody é sobre um mulher heterossexual que tenta ‘salvar’ um homem gay de suas próprias escolhas. Aparentemente, amizade e amor, em termos hollywoodianos, só podem ser sobre salvacionismo”.

Lucy Boynton e Rami Malek em cena de ‘Bohemian Rhapsody’, que ganhou quatro Oscars, incluindo melhor ator

Nos últimos anos, a ausência de representantes negros e a campanha para repórteres perguntarem qualquer coisa que não fosse relacionada à roupa das atrizes na cerimônia de entrega do Oscar geraram uma mobilização que colocou a questão da representatividade no centro do debate.

Mas alguma coisa parece estranha quando um filme anti-racista leva ao palco, na entrega da categoria principal, tão poucas pessoas negras.

A impressão é que vamos levar um tempo para encurtar o fosso entre concessões e representações na indústria do cinema.

No primeiro sentido, é até aceitável que um cineasta como Alfonso Cuarón conte a história de sua babá em Roma – e proponha a remissão dos pecados dele e dos espectadores com a delicadeza das cenas, fazendo todo mundo se sentir acalantado pela própria sensibilidade.

Outra coisa é contar a própria história e desagradar quem espera conciliação onde persistem tantos conflitos. Talvez por isso Infiltrado na Klan tenha tido tão poucas chances na categoria principal. Seria o mesmo que deixar aberto o microfone de Spike Lee para que, em vez de virar as costas em protesto, ele dissesse o que boa parte do púbico (e dos mandatários do cinema) não queriam ouvir. Já imaginou?

Entre mortos e feridos, não deixa de ser sintomático que a (talvez única) premiação incontestável da festa tenha sido a de Homem-Aranha no Aranhaverso, considerado por muitos o melhor filme de super-herói já feito.

Se as cinebiografias pecam pela licença poética (e pisam sem cuidado em uma história que mais escancara do que supura as nossas feridas), a animação de Bob Persichetti, Peter Ramsey e Rodney Rothman leva às últimas consequências a nossa capacidade de imaginação. É nela que está a nossa tão buscada “verdade”, um elemento em colapso por natureza.

O filme é física pura e tem uma investigação científica como ponto de partida: e se pudéssemos fundir os conceitos de tempo e espaço? Quantas dimensões seriam abertas? E como administrá-las?

Como uma boa aula de história (portanto multidisciplinar), mostra que não só nossas decisões nos levam a um infinito de encontros e possibilidades no futuro como são resultados de um infinito de possibilidades vivenciadas anteriormente (por nós e por quem nos inspira).

No campo da criação, as perguntas que guiam os cientistas parecem resolvidas: o que somos se não a somatória de tudo o que lemos, ouvimos, vivemos, testemunhamos? O que é o Homem Aranha se não uma fusão de referências, do cinema noir, do cartoon, do anime? O que é o futuro se não o eterno retorno de um passado contínuo, revivido, atualizado, incorporado – e ainda a ser construído?

Matheus Pichonelli

Jornalista, cientista social e fã de cinema. Atualmente, escreve para o UOL e Yahoo!